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COVID 03 - O VIRUS COMUNISTA

Atualizado: 12 de mai. de 2020



- É tudo comunista, petista safado! Se bobear é tudo diploma comprado em Cuba!


João Pedro dá mais um longo gole na sua Brahma enquanto come uma fatia de salame que pega em um prato no balcão da mercearia. Desde a proibição de abrir os botecos ele teve que arrumar um lugar alternativo pra beber e foi no armazém do seu Manfredo que ele achou seu refúgio.


Na verdade o armazém é um boteco, mas o fato dele vender umas latinhas de massa de tomate, milho verde, açúcar e azeitona, permite que ele seja categorizado como armazém, e, portanto, serviço indispensável, ficando assim autorizado a ficar aberto.


Aí seu Manfredo, esperto, seguindo as recomendações de seu presidente de que a economia não pode parar por causa de uma gripezinha, aproveita para vender sua cerveja. Para se garantir, ele obriga os clientes a ficarem de pé, de preferência com um pé do lado de dentro e outro do lado de fora, para não o comprometerem e poderem disfarçar caso a fiscalização chegue de surpresa.


- É tudo vagabundo, com medo do Bolsonaro achar o remédio e acabar com a semvergonhice – Resmunga o Seu Manfredo, sentando em um banco no fundo, estrategicamente distante do balcão para ninguém o ver, com uma máscara já meio acinzentada de tanto colocar a mão suja.


- Já foi tarde o ministro comunista! É só olhar no feice dele. Aquele papo de “Ciência não é religião”, “Primeiro a saúde depois o dinheiro”, tudo conversa de comunista maconheiro – Reclama Zezito, amigo de boteco de João Pedro, já meio embriagado e também sem máscara.


Em pé na porta do boteco, três barbudos com roupa de motoqueiros, vestidos com uma bandeira do Brasil nas costas, concordam com Zezito enquanto bebem suas long necks.


- Precisa ver que coisa bonita a manifestação de ontem, seu Manfredo. Só patriota, gente do bem, só carro bacana, muita bandeira do Brasil, hino nacional e o carái a quatro. – Fala um dos motoqueiros quase gritando.


- Nego até chorava quando a gente passava gritando “Com Bolsonaro no poder, STF é prá quê?”, “Patriotas, uni-vos!” e, o principal, “Liberdade é uma conquista! Governo militarista!!” – Comemora o outro.


- E o soco que que o Gilberto deu naquela comunistazinha? Saiu catando cavaco até o outro lado da rua – comemora Zezito enquanto bebe por engano no copo de João Pedro.


- E a coisa mais bonita de todas foi ver a minha véia lá com a gente, dando bandeirada em petista. – Fala com orgulho João Pedro enquanto esvazia o copo recheado de saliva de Zezito.


- Não acredito que Dona Manuela também tava lá...


Seu Manfredo simula surpresa só para dar corda para João Pedro, pois ele sabe que não tem nada que mexa mais com o orgulho dele do que falar da mãe de “80 anos, com saúde de 50”.


- Ué, a véia não perde uma, meu fio! E tenta botar uma máscara na cara dela procê ver onde ela te manda enfiar ela...


Nesse momento, entra correndo um homem de uns 50 anos, com máscara, calça branca e uma camisa vermelha com uma cruz branca no peito, e vai direto ao balcão.


- O senhor tem álcool 70 graus?


Seu Manfredo se levanta devagar, cheio de má vontade e se encosta no balcão.


- 30 reais!


- Quê isso? Tá maluco? 30 reais por um litro de álcool?


- E aproveita que não tá vendendo prá qualquer um não.


Nesse momento, João Pedro e Zezito já não conseguem mais se conter e caem na gargalhada.


- Comunista é folgado mesmo. Vai tomar banho de alquingel, vai flor? - Provoca João Pedro, se sentindo protegido pela sua turma.


O homem o ignora e tira duas notas de vinte do bolso.


- Me dá um, por favor.


Seu Manfredo vai arrastando os chinelos até a prateleira e volta mais devagar ainda, com o vidro de álcool na mão.


- Não tem troco não.


O homem percebe que não vai conseguir nada ali e simplesmente pega o álcool e se vira rapidamente para sair. Nesse momento, Zezito estica a perna por trás dele, enquanto João Pedro lhe dá uma esbarrada de ombro. Desequilibrado, o homem cai e o vidro de álcool se espatifa, espirrando na sua cara.


Desnorteado e com os olhos queimando, ele se levanta sem rumo e vai na direção de João Pedro que, achando que ele está lhe atacando, lhe dá outro empurrão, derrubando-o novamente. Ao cair, o homem ainda tenta segurar na camisa de Zezito, mas ele reage, lhe dando um soco enquanto ele cai.


Machucado, o homem tenta se levantar se segurando na perna de Zezito, que lhe dá novamente um chute, enquanto os dois motoqueiros, empolgados com a confusão, começam também a chutá-lo na barriga e na cara, sem que ele possa manifestar alguma reação.


- Comunista folgado, segura essa, seu vagabundo.


Descontrolados, continuam agredindo o homem até que finalmente dois homens com roupa de médicos de resgate entram correndo, e seguram os agressores que ainda o atacam.


- Vocês estão loucos, esse cara é médico, seus malucos, ele é médico! Parem com isso!


Todos se afastam e enquanto um dos médicos enxuga o sangue no rosto do médico ferido, o outro sai correndo e volta com uma maca de resgate, onde o colocam. Saem correndo e entram com ele em uma ambulância que estava estacionada ao lado do bar. A ambulância dá, então, meia-volta na rua e sai rapidamente com a sirene ligada.


Sem saber o que dizer, todos voltam para dentro do bar, entre calados e envergonhados. João Pedro dá um último gole na sua cerveja.


- Fecha prá mim, seu Manfredo... Cumé que a gente ia saber né? O cara chega vestindo camisa com a bandeira de Cuba, tirando onda... se fudeu...


João Pedro paga a conta e entra no seu carro, despedindo de todos. Sai, anda apenas dois quarteirões e para de frente à garagem de seu prédio. Enquanto procura o controle do portão, ainda meio embriagado, Flávia, sua mulher sai correndo do prédio, chorando desesperada, junto com seu filho, que fala ansioso ao celular.


- Onde você tava João? Porque que não atende o celular, homem de Deus?


- Tava tomando uma cerveja no seu Manfredo, ué. E você sabe que não carrego celular prá boteco. O que que aconteceu?


- Sua mãe, João, sua mãe...


- Que tem ela?


- Nem com quarentena você não para em casa. Ela tava reclamando desde ontem de febre, falta de ar, dor no corpo... Você conhece ela, vaidosa, não quis te falar nada... De repente teve uma crise...


- Meu Deus do céu! Já chamou a ambulância?


- Já chamamos, mas ela não chega nunca. O médico ligou e disse que estava chegando e que só ia comprar um álcool no bar, mas até agora não chegou... Não sei o que aconteceu, João... acho ela não está mais respirando...


As pernas de João Pedro começam a tremer e sua cabeça a rodar e ele cambaleia enquanto tenta segurar no braço da sua mulher.


- Chama a ambulância de novo, pelo amor de Deus, chama de novo.


- Tô falando com eles agora. Tiveram uma emergência... parece que um dos médicos foi agredido... tiveram que voltar para o hospital. – Diz o filho de João Pedro, chorando.


- Pede desculpas, prá eles, Joãozinho, pede desculpas, mas pede prá eles voltarem. Por favor, chama de novo. Pede desculpas prá ele Joãozinho...


- Eles desligaram...


- Vamos no meu carro...


- Ela não tá mais respirando João.


- Pede desculpas, prá eles, Joãozinho, pede desculpas... pede desculpas Joãozinho...

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