Já há duas semanas Alfredo arrasta os chinelos pela casa, após ter sido forçado judicialmente a ficar de quarentena em casa, cumprindo um ritual diário de ir do sofá ao banheiro, do banheiro ao sofá, do sofá à cozinha, da cozinha ao sofá, do sofá prá cama, da cama para o banheiro, do banheiro para a cozinha, da cozinha para o sofá.
Alfredo havia destroncado o dedão direito do pé ao chutar uma atriz vestida de mulher-lata, que protestava em frente a sua loja de coxinhas, junto com um grupo fantasiado de embalagens simbolizando o consumismo, porque ele se recusava a fechar as portas, apesar de todo apelo popular em tempos de isolamento social.
Alfredo, também conhecido como Al-Fedô era conhecido pelo desprezo pelo banho ou outras formas básicas de higiene e, principalmente por uma luta quase obcecada contra qualquer forma de arte, à qual dedicava grande parte dos seus dias a ridicularizar em piadinhas preconceituosas, a maioria relacionando arte a obscenidades e perversões.
Naquela manhã, após passar uma mistura de gordura de porco com pomada Minâncora no dedão que já começava a feder, Alfredo vai até a cozinha, pega uma caneca de café já requentado, um pão, que ele cheira antes de passar uma manteiga, e vai se sentar no sofá que já tem o seu formato no assento. Assim que liga a TV, a campainha de sua casa toca e ele se levanta assustado, já que ninguém o visita há semanas. Na verdade, ninguém nunca o visita, e agora que é proibido, menos ainda.
Vai até a cozinha e atende o interfone.
- Oi!
Ninguém responde.
- Oi! Quem é?
Ninguém responde.
Nesse momento a campainha toca novamente e ele se assusta. Larga o interfone e vai até a porta, olhando desconfiado pelo olho mágico. Vê então três pessoas vestidas em roupas brancas plásticas, com capacetes de laboratório e respiradores nas costas.
- Quem são vocês? Como chegaram aqui? Quem deixou vocês entrarem?
- SIFOD – Sistema de Fiscalização e Organização Doméstica. - Quem?
- Sistema de Fiscalização e Organização Doméstica – Eliminamos o que te incomoda.
- Quem deixou vocês entrarem?
- O senhor requisitou nossa presença. Lembra? Você quer qualidade na sua quarentena? Nós temos a fórmula da sua satisfação.
- Ah, então era de verdade. E é de graça? –
Totalmente.
Abre então a porta, ainda meio que desconfiado, mas empolgado pelo fato de ter alguém com quem conversar, mesmo sem ter entendido muito o que eles iriam fazer lá.
- Fiquem à vontade. Vieram preparados né?
Assim que ele abre a porta, uma mulher grandona, com ares de mandona, já vai entrando e circulando pela sala enquanto faz gestos para o homem baixinho atrás dela, que entra empurrando um enorme contêiner, com rodinhas, quase do seu tamanho.
- A cozinha. Zefa, quartos.
O baixinho vai verificar a cozinha e o rapaz que ela chama de Zefa vai até o quarto, frente ao olhar incrédulo de Alfredo que, ainda sem entender muito bem o que está acontecendo, se aproxima da mulher.
- Eu confesso que não entendi muito bem o que era todo o processo...
- Simples – a sua satisfação. E olha, isso aqui vai dar trabalho...
- Mas o que vocês fazem?
A mulher pega um tablet e mostra prá ele a página dele em uma rede social.
- Ah, minha página. O que tem ela?
- Qual o título da sua página?
- Fuckarte! – Foda-se arte! Rerere
- Então... Hiiii... a coisa aqui tá bem pior do que eu imaginei.
Faz um gesto para o baixinho mostrando os quadros nas paredes. O baixinho pega em seu carrinho uma escadinha e posiciona em frente a um grande quadro abstrato na sala, atrás do sofá. Sobe desajeitadamente na escada enquanto a mulher vai caminhando pela sala e pegando todos os bibelôs que encontra e amontoando-os em uma prateleira.
Zefa volta do quarto, quase não se contendo de ri, com uma pilha de livros nas mãos que joga com descuido dentro do carrinho de lixo.
- O cara é caso perdido mesmo. Ele tem uma estante cheia de livros no quarto.
- Ei o que que vocês estão fazendo? Esses livros eram da minha mãe. Ei espera aí, o que que você está fazendo com meu quadro? Esses são os enfeites da minha vó!
Demonstrando desinteresse, a mulher pega o tablet e passando aleatoriamente as telas, vai lendo postagens de Alfredo.
- “Chupa! bando de mamador”, “Vai mamar nas tetas da Lady Juanet!”, “Foda-se artistinhas de merda!”, “Quarentena de fome prá vocês bando de vagabundo!”, “Ninguém precisa de vocês.”
- É meu perfil pessoal, que que tem demais?
- “Quem precisa dessa porra de arte?”, “chupa Chico Buarque!!”, “Chega de viadagem!!” “O mundo não precisa de vocês”.
Enquanto isso, o baixinho vai tirando os quadros da parede e colocando no seu carrinho, enquanto a mulher vai juntando os bibelôs, pequenas esculturas de cangaceiros, cachorros de madeira, soldadinhos de chumbo, etc. e colocando-os em uma bolsa.
- Parem com isso, parem agora. Vocês não têm direito de fazer isso.
- Ui, até que prá quem odeia arte, você deveria estar se sentindo aliviado.
- Mas...
A mulher, ignorando os apelos de Alfredo, vai só apontando para os itens na sala.
- Discos, CDs, DVDs, pode pegar tudo. O Baixinho para o carrinho debaixo da prateleira e só joga os DVDs e os CDs dentro.
- Meus discos do Roberto Carlos, Sérgio Reis, Frank Sinatra!!
- Ué, tá aqui. Tudo “artista viadinho!”. Postou ontem.
- Mas Sérgio Reis?
- Palavras suas: “Artista é tudo viado safado sem serviço que vive as custa do governo ninguém precisa desse lixo”. Assim mesmo, sem vírgula.
- Mas eu tava falando desses artistinhas...
- Ué, quem você acha que faz as músicas? Um computador? Quem toca o violão, a sanfona, quem faz os arranjos? Hiii... Forro de mesa todo bordado, porta-retratos entalhados à mão, tapete de Van Gogh? Meu Deus, isso é uma heresia! Pega tudo. Ah, seu celular, por favor.
- Prá quê? A mulher pega o celular de sua mão, confere a marca e entrega para Zeta.
- Fodorola Fod24 – Ainda tem dessas peças de museu aí?
Zeta abre uma pochete na sua cintura e procura até que acha um celular igual ao de Alfredo que entrega prá ele.
- Limpinho, limpinho. Formatadinho, sem viadagem de fotinhas, musiquinhas, internet e essas coisas de afrescalhados. Telefone classicão, como qualquer celular tem que ser. Fala e escuta.
O baixinho vai juntando tudo e jogando no carrinho, cada vez mais descuidadamente. Zeta volta novamente do quarto com mais livros, alguns quadros e um abajur de base entalhada em madeira e com desenhos florais na cúpula.
- Ah, não, o abajur da tinha Nely, não! Isso tá há 200 anos na família.
Zeta só gargalha enquanto joga tudo dentro do carrinho.
- Viadagem antiga é viadagem do mesmo jeito. O baixinho volta da cozinha com uma caixa cheia de porta-copos rebuscados, pratos de florzinhas, garfos com detalhes entalhados no cabo, coleção de copos de chopp dourados.
- Acho que vamos ter que trazer o caminhão...
- Vocês não podem fazer isso. Vou chamar a polícia!
- Não precisa, pois já estão aqui na porta esperando.
- Esperando o quê?
- Esperando a sua reação quando a gente levar o seu computador e a sua televisão.
- Minha televisão?
Nesse momento, ele começa a tremer e corre com o olhar para procurar seu controle remoto. Corre para a estante da televisão desesperado, mas não o encontra. Olha então para o baixinho que balança o controle na sua frente, com um sorriso irônico.
- Tá procurando isso?
Nesse momento, suas pernas bambeiam e antes que ele caia desmaiado no chão, a mulher empurra com o pé uma cadeira para atrás dele, onde ele cai sentado, desfalecido. Acorda já à noite, deitado no sofá, só de cueca e, aos poucos vai se lembrando do que parecia ter sido um pesadelo. Se levanta ainda no escuro, mas ao tentar acender a luz, ela não acende.
Vai então até a cozinha e acende a luz, e ao voltar para sala vê que ela está vazia e o lustre da sua vó, que era o orgulho da sua sala, também já não estava mais lá. Na sua frente está apenas o móvel vazio da televisão, a mesinha de centro e prateleiras vazias nas paredes. Em cima da mesa um bilhete.
- A cueca com a foto da Anita e o sofá com desenhos rococós a gente busca amanhã.
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